D. Odilo Scherer:
“A carta do Papa é realista e muito forte”
04 Abr. 2010
O arcebispo de São Paulo considera que na carta à Irlanda “o Papa toma sobre si a dor das vítimas” e chama os responsáveis por tais crimes “à conversão, ao arrependimento, à penitência e a buscar o perdão de Deus”. Em entrevista ao jornal ‘O São Paulo’, Semanário da Arquidiocese de São Paulo, o cardeal Odilo Scherer garante ainda que a carta do Papa “é realista e muito forte”, mas é também “um alerta à vigilância”.
De que forma deve ser acolhida a carta do Papa aos católicos da Irlanda [a propósito dos abusos sobre menores cometidos por padres]?
A carta do Papa é realista e muito forte; deve ser lida com atenção e acolhida como uma palavra clara sobre a posição da Igreja em relação ao abuso sexual de crianças e adolescentes por pessoas da Igreja, mas também por pessoas não pertencentes a ela. A Igreja não ensina, não incentiva e não aprova isso, mas reprova e condena firmemente tais tristes factos. E quem os comete dever assumir as consequências perante Deus e perante os homens. Os abusos causaram sérios danos às pessoas e também à Igreja.
A carta é marcada pelo espanto, pela dor, pela indignação diante dos abusos e pelo desejo de reparar o mal cometido. Como tem visto as reacções a esta carta?
Fiquei impressionado com a clareza e a firmeza com que o Papa abordou as questões e lembrei-me das palavras do Evangelho: ‘A verdade vos libertará’. O Papa quis transmitir a todos os responsáveis pela Igreja – bispos, padres e superiores religiosos – essa mesma firmeza na busca de estabelecer a verdade sobre os factos; e também deixou claro que a Igreja, de forma alguma, está de acordo com tais crimes. O 6° mandamento da lei de Deus [Guardar castidade nas palavras e nas obras] tem de ser novamente levado a sério.
Bento XVI não poupa palavras na condenação dos crimes nem no reconhecimento dos erros cometidos. Estas são palavras duras, dolorosas mas, ao mesmo tempo, honestas e necessárias?
Sim, e não poderia ser diferente. Não podemos ser coniventes com crimes dessa natureza. Mas é preciso acrescentar algo mais: o Papa também toma sobre si a dor das vítimas e chama os responsáveis por tais crimes à conversão, ao arrependimento, à penitência e a buscar o perdão de Deus.
A Igreja sofre com esses escândalos. Com a descoberta de novos casos espalhados pelo mundo, a carta do Papa poderá ter múltiplos destinatários, além dos sacerdotes, das vítimas dos abusos, dos pais e de todos os católicos irlandeses?
A carta do Papa é dirigida especialmente aos católicos da Irlanda, mas é válida para os católicos de todo o mundo. Os factos, infelizmente, não acontecem apenas na Irlanda; e nem somente nos ambientes da Igreja. A tentação e a fragilidade da ‘carne’ está por toda parte... Os abusos sexuais sobre crianças são muito mais abundantes do que se possa imaginar e em todos os ambientes do convívio social. Acontecem em maior número debaixo dos tectos familiares. Apesar disso não diminuir em nada a gravidade de crimes cometidos por representantes da Igreja, faz pensar que ninguém deveria ficar com a alma lavada porque foram denunciados e admitidos casos na Igreja. O mal é bem mais amplo e profundo e requer uma revisão de posturas culturais do nosso tempo. O relaxamento e o desprezo pelos valores e conceitos ético-morais é uma das causas principais e a vítima é sempre a pessoa mais frágil e desprotegida.
Bento XVI oferece o ‘remédio’ para a cura do problema do abuso de crianças e adolescentes e das feridas causadas na vítimas, nas famílias e na própria Igreja. Em que consiste este ‘remédio’?
O Papa indica na carta uma série de medidas a serem adoptadas para a superação do problema na Irlanda; tais ‘remédios’ vão desde a chamada à penitência e à conversão, à responsabilização perante a justiça civil e canónica; mas também fala da ajuda às vítimas e das suas famílias e a uma grande acção missionária no país – da qual ele próprio quer participar, indo à Irlanda.
Interessante é que o Papa chama o povo da Irlanda, que foi tradicionalmente muito católico, a retomar forças da sua própria história religiosa, dos seus mártires e santos, a começar por São Patrício, um dos seus missionários, que contribuíram muito para a evangelização em várias partes do mundo ao longo da história.
Que sinais de esperança podem ser identificados neste momento de dor, que não atinge apenas a Igreja da Irlanda mas a toda a Igreja?
Antes de tudo, fica uma grande chamada de atenção: não podemos perder a noção da seriedade e gravidade dos factos. O relaxamento dos costumes e da moral é o chão no qual nascem e se desenvolvem, na maior ‘normalidade’, todos os vícios... Por outro lado, a carta é um alerta à vigilância: os pais estejam atentos à educação dos seus filhos e às companhias que frequentam. Antigamente as companhias eram apenas os amigos ou as pessoas próximas; hoje, a ‘companhia’ mais perigosa pode estar dentro de casa, na internet... Por outro lado, na Igreja, a dolorosa verificação dos factos é o caminho necessário para a purificação e a retomada do seu autêntico serviço prestado à humanidade. O poder da graça de Deus é maior que as insídias do Maligno, que semeia a erva daninha no campo da Igreja... Foi Jesus quem falou e isso dá-nos esperança.
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in http://www.jornalw.org/?cont_=ver2&id=1031&lang=pt
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É arriscado escrever sobre estas coisas. Não estão na moda
Público, 2010-04-02 (sexta-feira, 2 de Abril de 2010)
José Manuel Fernandes
Não sou crente. Educado na fé católica, passei pelo ateísmo militante e hoje defino-me como agnóstico. Talvez não devesse, por isso, pôr-me a discutir os chamados "escândalos de pedofilia" na Igreja Católica. Até porque não sei se, como escreveu António Marujo neste jornal - no texto mais informado publicado sobre o tema em jornais portugueses -, estamos ou não perante "A maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos".
Tendo porém a concordar com um outro agnóstico, Marcello Pera, filósofo e membro do Senado italiano, que escreveu no Corriere della Sera que se, sob o comunismo e o nazismo, "a destruição da religião comportou a destruição da razão", a guerra hoje aberta visa de novo a destruição da religião e isso "não significará o triunfo da razão laica, mas uma nova barbárie". Por isso acho importante contrariar muitas das ideias feitas que têm marcado um debate inquinado por muita informação errada ou manipulada.
Vale por isso a pena começar por tentar saber se o problema da pedofilia e dos abusos sexuais - um problema cuja gravidade ninguém contesta, ocorram num colégio católico, na Casa Pia ou na residência de um embaixador - tem uma incidência especial em instituições da Igreja Católica. Os dados disponíveis não indicam que tenha: de acordo com os dados recolhidos por Thomas Plante, professor nas universidades de Stanford e Santa Clara, a ocorrência de relações sexuais com menores de 18 anos entre o clero do sexo masculino é, em proporção, metade da registada entre os homens adultos. É mesmo assim um crime imenso, pois não deveria existir um só caso, mas permite perceber que o problema não só não é mais frequente nas instituições católicas, como até é menos comum. Tem é muito mais visibilidade ao atingir instituições católicas.
Uma segunda questão muito discutida é a de saber se existe uma relação entre o celibato e a ocorrência de abusos sexuais. Também aqui não só a evidência é a contrária - a esmagadora maioria dos abusos é praticada por familiares próximos das vítimas - como o tema do celibato é, antes do mais, um tema da Igreja e de quem o escolhe. Não existiu sempre como norma na Igreja de Roma e hoje esta aceita excepções (no clero do Oriente e entre os anglicanos convertidos). Pode ser que a norma mude um dia, mas provavelmente ninguém melhor do que o actual Papa para avaliar se esse momento é chegado - até porque talvez ninguém, no seio da Igreja Católica, tenha dedicado tanta atenção ao tema dos abusos sexuais e feito mudar tanta coisa como Bento XVI.
Se algo choca na forma como têm vindo a ser noticiados estes "escândalos" é o modo como, incluindo no New York Times, se tem procurado atingir o Papa. Não tenho espaço, nem é relevante para esta discussão, para explicar as múltiplas deturpações e/ou omissões que têm permitido dirigir as setas das críticas contra Bento XVI, mas não posso deixar de recordar o que ele, primeiro como cardeal Ratzinger e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, depois como sucessor de João Paulo II, já fez neste domínio.
Até ao final do século XX o Vaticano não tinha qualquer responsabilidade no julgamento e punição dos padres acusados de abusos sexuais (e não apenas de pedofilia). A partir de 2001, por influência de Ratzinger, o Papa João Paulo II assinou um decreto - Motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela - de acordo com o qual todos os casos detectados passaram a ter de ser comunicados à Congregação para a Doutrina da Fé. Ratzinger enfrentou então muitas oposições, pois passou a tratar de forma muito mais expedita casos que, de acordo com instruções datadas de 1962, exigiam processos muito morosos. A nova política da Congregação para a Doutrina da Fé passou a ser a de considerar que era mais importante agir rapidamente do que preservar os formalismos legais da Igreja, o que lhe permitiu encerrar administrativamente 60 por cento dos casos e adoptar uma linha de "tolerância zero".
Depois, mal foi eleito Papa, Bento XVI continuou a agir com rapidez e, entre as suas primeiras decisões, há que assinalar a tomada de medidas disciplinares contra dois altos responsáveis que, há décadas, as conseguiam iludir por terem "protectores" nas altas esferas do Vaticano. A seguir escolheu os Estados Unidos - um dos países onde os casos de abusos cometidos por padres haviam atingido maiores proporções - para uma das suas primeiras deslocações ao estrangeiro e, aí (tal como, depois, na Austrália), tornou-se no primeiro chefe da Igreja de Roma a receber pessoalmente vítimas de abusos sexuais. Nessa visita não evitou o tema e referiu-se-lhe cinco vezes nas suas diferentes orações e discursos.
Agora, na carta que escreveu aos cristãos irlandeses, não só não se limitou a pedir perdão, como definiu claramente o comportamento dos abusadores como "um crime" e não apenas como "um pecado", ao contrário do que alguns têm escrito por Portugal. Ao aceitar a resignação do máximo responsável pela Igreja da Irlanda também deu outro importante sinal: a dureza com que o antigo responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé passou a tratar os abusadores tem agora correspondência na dureza com que o Papa trata a hierarquia que não soube tratar do problema e pôr cobro aos crimes.
De facto - e este aspecto é muito importante - a ocorrência destes casos de abusos sexuais obriga à tomada de medidas pelos diferentes episcopados. Quando isso acontece, a situação muda radicalmente. Nos Estados Unidos, país onde primeiro se conheceu a dimensão do problema, a Conferência de Dallas de 2002 adoptou uma "Carta para a Protecção de Menores de Abuso Sexual" que levaria à expulsão de 700 padres. No Reino Unido, na sequência do Relatório Nolan (2001), acabou-se de vez com a prática de tratar estes assuntos apenas no interior da Igreja, passando a ser obrigatório dar deles conta às autoridades judiciais. A partir de então, como notava esta semana, no The Times, William Rees-Mogg, a Igreja de Inglaterra e de Gales "optou pela reforma, pela abertura e pela perseguição dos abusadores em vez de persistir no segredo, na ocultação e na transferência de paróquia dos incriminados".
Bento XVI, que não despertou para este problema nas últimas semanas, não deverá precipitar decisões por causa desta polémica. No passado domingo, durante as cerimónias do Domingo de Ramos, pediu aos crentes para não se deixarem intimidar pelos "murmúrios da opinião dominante", e é natural que o tenha feito: se a Igreja tivesse deixado que a sua vida bimilenar fosse guiada pelo sentido volátil dos ventos há muito que teria desaparecido.
Ao mesmo tempo, como assinalava John L. Allen, jornalista do National Catholic Reporter, em coluna de opinião no New York Times, "para todos os que conhecem a experiência recente do Vaticano nesta matéria, Bento XVI não é parte do problema, antes poderá ser boa parte da solução".
Uma demonstração disso mesmo pode ser encontrada na sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, de 25 de Dezembro de 2005, ano em que foi eleito. Boa parte dela ocupa-se da reconciliação, digamos assim, entre as concepções de "eros", o termo grego para êxtase sexual, e de "ágape", a palavra que o cristianismo adoptou para designar o amor entre homem e mulher. Se, como referia António Marujo na sua análise, o teólogo Hans Küng considera que existe uma "relação crispada" entre catolicismo e sexualidade, essa encíclica, ao recuperar o valor do "eros", mostra que Bento XVI conhece o mundo que pisa.
Por isso eu, que nem sou crente, fui informar-me sobre os casos e sobre a doutrina e escrevi este texto que, nos dias inflamados que correm, se arrisca a atrair muita pedrada. Ela que venha.
José Manuel Fernandes, Público.
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