POSTAL DO DIA
As últimas palavras de Bento XVI não me descansam
1.
Bento XVI morreu e o seu corpo está a ser velado no Vaticano. Milhares de fiéis esperaram horas para poder oferecer a sua homenagem ao “guardião da fé”.
Bento XVI surpreendeu-me.
E merece ser aplaudido por algumas das marcas que nos deixou: a começar pelo modo como abdicou de todo o poder, o primeiro que o fez nos últimos 600 anos na Igreja Católica.
Não é coisa pouca.
Um homem que abdica do poder, um homem que percebe que já não o poder exercer, um homem que o consegue apesar de todas as pressões que deve ter sofrido dos seus mais próximos, dos que com ele perderiam regalias e estatuto, é tudo menos um pormenor.
2.
Bento XVI era um intelectual.
Um homem que pensava.
Que lia e escrevia.
Um homem que falava várias línguas, que lia diretamente do hebraico, que gostava e precisava de longos retiros para se sentir ele próprio.
Um intelectual tem dificuldades muito particulares no exercício do poder. E quando o exercício do poder significa uma influência direta em relação à vida de milhões de pessoas, a coisa piora. Não é fácil encontrar um intelectual que não tenha dificuldades na tomada de posição, regra geral quando assume o poder tenta que a sua natureza não seja prevalecente em relação ao desígnio da ação – na maior parte dos casos não dá bom resultado.
Bento XVI conseguiu deixar uma marca importante.
E talvez de uma forma inadvertida abriu espaço para Francisco, um líder completamente diferente.
3.
Li com enorme prazer a biografia que escreveu sobre Jesus Cristo.
Extraordinário contributo para a compreensão, sem ortodoxias da figura do filho de José e Maria, do “filho de Deus” para tantos de nós. Para mim também, apesar de não ser religioso, para mim também.
Esta introdução para reforçar a força e o interesse da última frase que saiu da boca de Bento XVI antes de partir.
Um enfermeiro de turno, o último que viu o Papa Emérito vivo, escutou as palavras e passou-as ao mundo. Bento XVI terá dito em italiano, “Senhor, eu amo-te”.
4.
Uma frase importante que me fez pensar esta manhã.
Uma última frase que, tendo acontecido ou não, ficará para a história.
Mas que diz um pouco sobre o muito que devemos refletir para que a nossa passagem por aqui – a minha e a tua – possa ser virtuosa.
Estou há muitos anos convencido de que o mais importante não é amarmos uma ideia de transcendência. Apesar de acreditar em Deus não faz sentido estar todos os dias inclinado perante o silêncio quando a relação com o que me transcende só pode ser alimentada por aquilo que eu fizer aqui.
Dizer que amo Deus antes de partir é muito bonito e importante, não o nego.
Mas muito mais importante é a capacidade de sermos todos os dias pessoas inteiras.
De sermos gente que acredita que o caminho se faz aqui, que o combate contra as iniquidades, contra a miséria humana, contra as injustiças se faz aqui.
Essa é a batalha, termos a capacidade de dizer que amamos a vida, esta que temos e não qualquer outra que exista fora de nós.
Que amamos a possibilidade de podermos ser o que sonhamos. De podermos ganhar sem atropelar a pessoa ao lado. De podemos escrever e ler livros, ver peças de teatros e filmes, imaginar caminhos nunca caminhados, responder a perguntas nunca respondidas ou simplesmente fazer o melhor possível.
Estar à altura do que a vida nos propõe.
Mesmo que a nossa vida seja estreita ou que a julguemos estreita, temos de fazer o melhor possível com o que somos, com o que herdámos.
Acredito em Deus, mas no final da minha vida diria “amei cada minuto que aqui passei, cada possibilidade que tive de ser melhor, de fazer melhor, cada falhanço também”.
Porque o meu Deus, como já escrevi num livro a que chamei “Amor”
“… Não tem voz grossa, tem a que imagino. O meu Deus não me castiga, oferece-me liberdade. O Meu Deus não me chantageia, acredita na responsabilidade. O meu Deus não me corta o desejo, recomenda-me uma canção. O meu Deus dança comigo quando danço sem par. O meu Deus tem humor, escuto-o e sei do que falo. O meu Deus está aqui, se me virar rápido ainda o vejo. O meu Deus é um pressentimento, uma promessa, é o bem e o mal, sou eu nos piores dias. É esperança e virtude. O meu Deus acredita em mim”.
Foi isso que escrevi e talvez um dia, quem sabe, o possa discutir com Bento XVI numa qualquer língua que hoje não conheço.
LO
fonte: Luís Osório
Bento XVI |
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