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sábado, 9 de março de 2024

Zé Tolentino

António Lobo Antunes

 

Zé Tolentino: ele tem as duas coisas em grau altíssimo, o malandro. Uma bondade enorme e a inteligência metida lá dentro. De que serve ela, aliás, fora disso? A bondade
(e, já agora, a modéstia)
rodeiam-no como um halo, a inteligência possui uma descrição e uma delicadeza que não sei se encontrei em mais alguém. Para além disto
(ele, de facto, é escandalosamente rico)
carrega uma agudeza e uma cultura de cristal de rocha e um talento poético de excepção. Nós somos, felizmente, um país de poetas, de grandes poetas, e José Tolentino Mendonça é sem dúvida um deles. E isto é verdade porque eu digo. A sua voz é inteiramente pessoal, compreende-se, ao lê-lo, que o seu conhecimento das obras alheias é muito grande, nota-se, como em qualquer artista, o halo dos autores que foram importantes para ele, mas a sua voz não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo. (Se eu fosse parvo escrevia eu próprio, que é como pôr ketchup em cima de rodelas de tomate.) Não só não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo como se sente que a qualidade da sua voz vai continuar a crescer. E o pouco
(o muito pouco)
que conheço da sua prosa é de altíssima qualidade. Não é um ficcionista nem me interessaria que o fosse, é um magnífico escritor com um perfeito domínio da ondulação e do ritmo, capaz de pensar numa musicalidade de cristal, denso sem nunca ser pesado, fundo sem nunca sair pela outra ponta, de palavras todas dominadas como cavalinhos de circo. O talento deste homem, naturalmente humilde, faz-nos sentir aquela inveja boa da qual o Zé Cardoso Pires me falou tantas vezes:
— Tenho uma inveja boa de ti,
dizia ele todo vaidoso
tenho uma inveja boa de ti
e é óptimo ter uma inveja boa dos camaradas de ofício. Infelizmente, Zé, falta-me a tua qualidade humana e nisso invejo-te também. Eu, que me acho o melhor do mundo
(não tenho lugar em mim para falsas modéstias)
invejo-te de um modo que me faz morder-me todo. Invejo-te a quantidade e invejo-te a qualidade, quase que dava o cu
(desculpa lá, não sou padre)
para compor poemas assim. Sendo um homem complexo, por vezes aparentemente contraditório, consegues sempre tocar-me no coração do coração porque a tua inteligência é uma doçura de gume que me penetra sempre até ao centro de mim, onde estou eu e tudo o que amo também. Devo-te o prazer de te ler, devo-te o prazer de aprender contigo
(que ensinas sempre aprendendo, malandro, outra virtude rara)
devo-te o prazer de, ao estarmos juntos, sermos dois sobretudo quando conseguimos ser um. Esta crónica não vai ser comprida porque está cheia de amor, amizade, respeito e ternura e esses sentimentos poupam-se. Só quero dizer quanto te agradeço não por seres meu amigo, só quero dizer quanto te agradeço por eu ser teu amigo. Quem não necessita de um amigo assim nesta vida? Espero que tenha sobrado suficiente papel nesta página para caber lá um abraço.
© ANTÓNIO LOBO ANTUNES
The Dancing Words

quarta-feira, 6 de março de 2024

Muita Luz!

Ilumina, Senhor, o que resta em nós da noite. 


O escuro fixa-se à vida, propaga-se uma treva pelos corredores da casa, a esperança que tanto queríamos tem as luzes apagadas há tanto tempo! Tropeçamos dentro de nós, e por toda parte, em fios que não vemos. Assistimos ao nascer do teu dia, mas nem sempre renascemos para ele, já que nos aprisionam os laços de seda desta e daquela escuridão, que bem conheces. lumina, por isso, Senhor, os pátios da tristeza pequenina que contamina tudo. Entreabre-nos à tua verdade, que é o cotidiano vigor dos nossos recomeços. Faz-nos olhar a maré alta, o oceano vasto, as coisas simples e plenas como sinais do que somos chamados a ser. Alimenta-nos do pão claro da alegria. Dá-nos a vida intacta. 

Cardeal D. José Tolentino Mendonça


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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Notícia Universal

 

Tolentino Mendonça 

Queridos irmãs e irmãos, nós não estamos a celebrar o Natal do Senhor apenas como um fato que interessa aos cristãos. Não é apenas uma coisa nossa, uma coisa para nós. Esta boa notícia é uma notícia universal, é uma notícia para chegar a todos.


“Hoje nasceu-vos um Salvador.” Poder dizer isto, poder primeiro aceitar esta verdade no fundo do meu coração: hoje nasceu para mim um Salvador. E poder contagiar, poder contaminar, poder alargar o horizonte da história com esta verdade que é a verdade transformadora, a verdade que salva. Porque aquele Menino, aquele Filho que nos foi 

dado transporta para nós a salvação.


É belo pensarmos como é que esta salvação se manifesta, “Encarnou no seio da Virgem Maria e Se fez homem”. E se fez um de nós. Então, nós não estamos sós. E a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus – a nossa vida frágil, a nossa vida pequenina, a nossa vida impreparada, a nossa vida incompleta. A nossa vida que porventura até não nos satisfaz, a nossa vida esgotada, a nossa vida cansada, a nossa vida inconclusa, a nossa vida é o lugar de Deus, é a tenda de Deus, é a morada de Deus e de toda a Humanidade. Por isso, nós cristãos somos servos da humanidade, temos de cantar a beleza da humanidade, a inteireza da humanidade. De todo o Homem. E sobretudo das humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade daqueles que ficam para trás, daqueles que não têm voz nem vez, da humanidade sofrida, da humanidade subtraída, dos excluídos, dos descartados. Nós só temos a humanidade para poder tatear o rosto de Deus, é na humanidade que nós encontramos o divino. Por isso, a humanidade é o bem mais precioso, a humanidade para nós é o lugar de Deus, o rosto de Deus. Esse espaço onde Ele resplende.


~Cardeal D. José Tolentino Mendonça (homilia).

domingo, 15 de outubro de 2023

Em última análise, só o Amor conta

Francisco pede que doutora da Igreja
inspire comunidades e responsáveis,
para superar «lógica legalista e moralista»

Vaticano: Papa publica novo documento sobre Santa Teresinha, evocando «genialidade» do seu legado espiritual


O Papa publicou hoje uma nova exortação sobre a vida e legado espiritual de Santa Teresinha, Teresa do Menino Jesus, convidando a imitar a religiosa francesa na redescoberta do “essencial” da fé e da centralidade do amor, na vida cristã.
“Num momento de complexidade, ela pode ajudar-nos a redescobrir a simplicidade, o primado absoluto do amor, da confiança e do abandono, superando uma lógica legalista e moralista que enche a vida cristã de obrigações e preceitos e congela a alegria do Evangelho”, refere, no documento intitulado ‘C’est la confiance’ (é a confiança), uma citação da própria Santa Teresinha.
Teresa de Lisieux, monja carmelita (Alençon, França, 02 de janeiro de 1873 – Lisieux, França, 30 de setembro de 1897) morreu com 24 anos de idade, sendo umas das padroeiras dos missionários na Igreja Católica.
“Num tempo que nos convida a fechar-nos nos próprios interesses, Teresinha mostra a beleza de fazer da vida um dom. Num período em que prevalecem as necessidades mais superficiais, ela é testemunha da radicalidade evangélica”, indica Francisco.
“Numa época de individualismo, ela faz-nos descobrir o valor do amor que se torna intercessão. Num momento em que o ser humano vive obcecado pela grandeza e por novas formas de poder, ela aponta a via da pequenez. Num tempo em que se descartam tantos seres humanos, ela ensina-nos a beleza do cuidado, do ocupar-se do outro”, acrescenta.
O Papa fala num tempo de “entrincheiramento e reclusão” na Igreja, propondo a figura de Santa Teresinha como inspiração para a “saída missionária, conquistados pela atração de Jesus Cristo e do Evangelho”.
O documento começa com um texto escrito, em setembro de 1896, por Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face: “Só a confiança e nada mais do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor”.
Francisco considera que estas palavras “sintetizam a genialidade da sua espiritualidade e seriam suficientes para justificar o facto de ter sido declarada doutora da Igreja”.

"A sua genialidade consiste em levar-nos ao centro, àquilo que é essencial, àquilo que é indispensável. Com as suas palavras e com o seu percurso pessoal, mostra que, embora todos os ensinamentos e normas da Igreja tenham a sua importância, o seu valor, a sua luz, alguns são mais urgentes e mais constitutivos para a vida cristã”.

O Papa destaca outra frase da religiosa carmelita, “no coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor!”, para sublinhar que “o centro da moral cristã é a caridade, que é a resposta ao amor incondicional da Trindade”.
“Em última análise, só o amor conta”, insiste.
O texto sublinha que a vida e obra de Santa Teresinha fazem “parte do tesouro espiritual da Igreja”.
“Como teólogos, moralistas, estudiosos de espiritualidade, como pastores e como crentes, cada qual no respetivo âmbito, temos ainda necessidade de acolher esta intuição genial de Teresinha e tirar as devidas consequências teóricas e práticas, doutrinais e pastorais, pessoais e comunitárias. São precisas audácia e liberdade interior para o poder fazer”, apela o pontífice.
Francisco evoca o reconhecimento que foi prestado pelos seus predecessores ao percurso de vida da santa de Lisieux, começando com o Papa Leão XIII, que permitiu que ela entrasse no convento aos 15 anos; Pio XI canonizou-a em 1925 e, em 1927, proclamou-a como padroeira das missões; São João Paulo II declarou-a doutora da Igreja em 1997.
O Papa recorda ainda o “coração” da espiritualidade de Teresa, a que ela chamava o “pequeno caminho”, também conhecido como o caminho da infância espiritual.
“É a confiança que nos conduz ao Amor e assim nos liberta do temor; é a confiança que nos ajuda a desviar o olhar de nós mesmos; é a confiança que nos permite colocar nas mãos de Deus aquilo que só Ele pode fazer. Isto deixa-nos uma imensa torrente de amor e de energias disponíveis para procurar o bem dos irmãos”, indica.
A exortação apostólica conclui-se com uma oração do Papa: “Querida Santa Teresinha, a Igreja precisa de fazer resplandecer a cor, o perfume, a alegria do Evangelho. Ajuda-nos a ter sempre confiança, como tu fizeste,o grande amor que Deus tem por nós, ara podermos imitar todos os dias o teu pequeno caminho de santidade”.

OC

Fonte: Ecclesia
via WhatsApp/João Pombo

A força manifesta-se na fraqueza

Santa Teresa de Jesus, que sabia bem conjugar santidade e humor — mistura muito saudável! — , diz que é uma ingenuidade supor que “as almas às quais Nosso Senhor se comunica, de uma maneira que se julgaria privilegiada, estejam, contudo, asseguradas nisso de tal modo que nunca mais tenham necessidade de temer ou de chorar os seus pecados”.

O caminho espiritual não nos impermeabiliza em nenhuma etapa em relação à vulnerabilidade, da qual temos de estar conscientes. Transportamos o nosso tesouro em vasos de barro - como nos recorda São Paulo - para demonstrar que “este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós mesmos” (2 Coríntios 4,7). Somos, por isso, chamados a viver o dom de Deus, até o fim, na fragilidade, na fraqueza, na tentação e na sede. Podem variar de gênero os problemas que vivemos, podem mudar de frequência, ou de intensidade, mas acompanhar-nos-ão sempre. As tentações vão existir.

#tolentinomendonca #josetolentinomendonca

terça-feira, 26 de setembro de 2023

O Senhor que cuida das estrelas

 

Amigos, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas. Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” 


Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. 


E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada.


O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. 


E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé.


~Cardeal D. José Tolentino Mendonça (homilia) 

Mural do Cardeal Tolentino


segunda-feira, 29 de maio de 2023

Todos precisamos de perdão

Nosso desígnio, inconfessado, mas claríssimo, passa a ser atravessar a vida (e o que nos resta dela) com o estatuto de vítima. 


A nossa cabeça de pessoas crescidas é complicada. 


Descobrimos que há um prazer em listar achaques e traições, e se a minha chaga puder ser maior do que a tua tanto melhor, isso reforça o meu estatuto. A verdade é que se não tomarmos atenção, a desgraça íntima torna-se um escanzelado pódio onde nos blindamos. Penso que uma viragem se opera quando aceitamos perceber que somos todos vulneráveis. É fácil reproduzir um esquema dialéctico em que somos a vítima e o outro agressor e esquecer que ele também é atravessado pelo sofrimento. De fato, não raro, a agressão é uma linguagem desviada para exprimir ou para dissimular a condição de vítima. 


Um necessário caminho é reconhecer que naqueles que nos ferem (ou feriram) há também bloqueios, mazelas e opacos novelos. Se não nos amaram, não foi necessariamente por um ato deliberado, mas por uma história porventura ainda mais sufocada do que a nossa. Não se trata de desculpabilização, mas de reconhecer que naquele que não me fez justiça ou não me devolveu a cordialidade que investi existe alguém provado pelo limite. E que a ferida agora acesa não se destinava a mim especificamente: era um magma de violência à deriva, à beira de estalar.


Todos precisamos de perdão.

Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha.


Muitas vezes a aproveitamos, a dor, para nos instalarmos nela. Preferimos ficar a esgravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade, em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa. Parece que aquilo que aconteceu (e de mal, ainda por cima) saciou-nos completamente. As ofensas recebidas revelam-nos um duro e irônico retrato de nós. Ora, para perdoar é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O sol não brota de repente. Essa demora é uma condição da sua verdade.

Tolentino

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Até ao fim

Com a entrada triunfal em Jerusalém, Jesus realiza a sua vontade de ser reconhecido como o Filho de Deus e o Messias prometido. Mas o seu triunfo é totalmente diferente daquele que o mundo costuma imaginar. Jesus não chega montado num cavalo de guerra, acompanhado de exércitos, para conquistar territórios ou riquezas. Ele vem num jumentinho, humilde e manso, acompanhado de um grupo de discípulos simples e pobres. Não vem impor a sua vontade pela força, mas sim pela palavra e pelo amor.

Ao entrar em Jerusalém, Jesus sabia que seria preso, julgado e condenado à morte. Mas não recuou diante do seu destino. Ele sabia que aquele era o caminho que o Pai lhe tinha traçado e que, através da sua morte e ressurreição, salvaria a humanidade do pecado e da morte. Por isso, apesar de todo o sofrimento e da angústia que sentia, não desistiu da sua missão.

O Domingo de Ramos convida-nos a refletir sobre a nossa própria vida. Quantas vezes nos sentimos desencorajados diante das dificuldades e dos obstáculos que encontramos no caminho? Quantas vezes temos medo de enfrentar o sofrimento e a morte? Precisamos aprender com Jesus a confiar na vontade do Pai e a seguir o seu exemplo de humildade, mansidão e amor. Somente assim poderemos experimentar a verdadeira alegria da Páscoa, a alegria da vitória sobre o pecado e a morte, a alegria da vida nova em Cristo.

Assim, irmãos e irmãs é um momento em que olhamos para Cristo e deixamo-nos interpelar pela sua entrada triunfal em Jerusalém. É um momento em que nos perguntamos se estamos prontos para acolher este Rei que vem ao nosso encontro, para O seguirmos nas suas dores e nos seus triunfos, para O amarmos como Ele nos amou, até ao fim.

Cardeal José Tolentino de Mendonça 

 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

REZAR O ALARGAR DA VIDA

 

REZAR O ALARGAR DA VIDA


Ensina-nos, Senhor, a ser mais simples do que somos, capazes de acolher a vida na sua inteireza, assumindo o grande serviço que é desimpedir e descomplicar.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais bondosos do que somos, disponíveis a suspender a rotineira máquina dos julgamentos e a fixarmo-nos não na imperfeição, mas na porção de autenticidade que cada um transporta.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais mansos do que somos, escolhendo a via da doçura que é própria de quem se dispõe a escutar e a reconciliar, em vez da dureza que apressadamente divide.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais paternos e maternos do que somos, implicados a cada momento na gestação positiva da vida, aceitando que a conjugação do verbo nascer acompanha os seres humanos até ao fim.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais artesãos da paz do que somos, valorizando nesse trabalho reparador todos os fios da relação, mesmo aqueles que se diriam indecisos, frágeis ou perdidos.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais crentes do que somos, arriscando substituir o pessimismo pela esperança quando se trata de avaliar as sementes e o percurso complexo que é afinal o de qualquer existência.

P. Tolentino
30.01.2023

sábado, 21 de janeiro de 2023

demasiadas coisas…

A nossa vida está carregada de coisas. Demasiadas coisas. 


Obstáculos que se veem e que não se veem, mas que nos fazem caminhar esmagados pelo seu peso. Com o passar do tempo urdimos em torno da vida uma teia quase invisível de pequenas prisões, de círculos sem saída que implodem a nossa liberdade, de ínfimas concessões aparentemente insignificantes, mas que, amontoadas, prendem por muito tempo as nossas asas com cruéis alfinetes. E damos por nós, por exemplo, hipotecados ao materialismo mais primário, com a única preocupação de fazer crescer o aprovisionamento do nosso celeiro. Ou reféns de um vazio crescente que nos dinamita por dentro. Não conseguimos já levantar voo. 


Queremos controlar os detalhes da vida, moldá-la à nossa ambição estreita, retê-la, como se isso estivesse na nossa mão. E, com isso, não enxergamos a lição fundamental: que a lei mais profunda da vida se acolhe no paradoxo do amor. Quando entrego a vida como dom é que ela se multiplica. Quando me abandono é que me encontro. Quando digo «a minha vida é tua» é que ela me pertence verdadeiramente. 


A vida será uma aventura fecunda se estivermos seguros desse amor. 


~José Tolentino Mendonça

'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'

José Tolentino Mendonça 


domingo, 8 de janeiro de 2023

somos nós

Queridos irmãs e irmãos, no final da celebração do mistério do Natal, temos a Festa da Epifania. O nascimento de Jesus, o Deus connosco, tem de resplandecer e cada um de nós é testemunha, cada um de nós que está aqui é um implicado nesse nascimento, e é chamado a transportar essa boa nova, essa alegria, essa possibilidade de encontro a todas as mulheres e a todos os homens. Nós não vivemos o mistério em função de nós próprios, da nossa auto referencialidade, da nossa auto preservação, mas nós vivemos este mistério em Deus que é amor, que tem um coração onde todos cabem. E por isso, na nossa maneira de olhar, na nossa maneira de estar, nas escolhas que fazemos, na construção do mundo que efectivamos, temos de ter isso em conta – a universalidade. Porque este Menino que nasceu ensina-nos a nascer.


Nós, dentro de dias, começamos a arrumar os presépios dentro dos sacos, dentro das caixas, mas é importante que não arrumemos o espírito do presépio porque Jesus já nasceu há dois mil anos. Quem precisa de nascer hoje somos nós. Somos nós.


~José Tolentino Mendonça

Tolentino Mendonça 


sábado, 24 de dezembro de 2022

Encontrar Jesus

Queridos irmãs e irmãos, o Natal fica incompleto se cada um de nós não puder ver com os seus próprios olhos e não puder tocar o mistério de Deus. O Natal é a anti abstração. 


O Natal possui a concreta objetividade de um acontecimento que se dá diante de nós e em nós. Cada um com as perguntas que traz, com as experiências que transporta, com a situação real que vive é chamado a ver Deus. A ver Deus naquele Menino de carne e osso, naquela criança, naquele Filho que nos foi dado. Ao mesmo tempo, que somos igualmente chamados a nos deixarmos ver por Ele. 


A esse propósito escreveu Santo John Henry Newman: "Quem quer que tu sejas, Deus olha-te de um modo único e particular; Ele chama-te pelo nome; Ele te vê e compreende porque é Ele que te criou. Ele conhece tudo aquilo que existe em ti, cada uma das tuas emoções e dos teus pensamentos, a tua força e a tua fraqueza". Jesus não vem apenas ao encontro da Humanidade, vem ao encontro de mim, de ti, de cada um de nós. E o verdadeiro ver aplicado a Jesus implica a compreensão profunda de quanto somos vistos, quer dizer, de quanto somos olhados, amados e conhecidos. 

~José Tolentino Mendonça 

José Tolentino Mendonça 


domingo, 9 de outubro de 2022

Travessia da Infância

Quietos fazemos as grandes viagens

só a alma convive com as paragens

estranhas


lembro-me de uma janela

na Travessa da Infância

onde seguindo o rumor dos autocarros

olhei pela primeira vez 

o mundo


não sei se poderás adivinhar

a secreta glória que senti

por esses dias


só mais tarde descobri que

o último apeadeiro de todos

os autocarros

era ainda antes 

do mundo


mas isso foi depois

muito depois

repito


~Tolentino de Mendonça



sexta-feira, 23 de setembro de 2022

E vós, quem dizeis que Eu sou?

Queridos irmãs e irmãos,

“E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Cada cristão é colocado perante esta pergunta porque cada um de nós é um intérprete de Jesus. Nós interpretamos a vida de Jesus e, no nosso coração e na nossa vida, temos de responder a esta pergunta: E para vós, quem sou Eu?

Primeiro Jesus pergunta o que é que se ouve dizer acerca dele. É interessante que uns dizem que ele é João Baptista, outros que é Elias, Jeremias ou um dos profetas. Interpretam Jesus a partir daqueles modelos que conhecem, a partir da tipologia profética, identificando Jesus mais com um ou com outro. Interpretam Jesus a partir do conhecido, do familiar, da tradição, do próximo.

Quando Jesus interroga os seus, Jesus está à espera de mais. E, de facto, esse mais surge na boca de Pedro: «Senhor, tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». Isto é, para Te compreender não basta aquilo que já conhecemos, aquilo que já vimos noutros. Para Te dizer, para Te nomear não basta o saber acumulado de séculos e de tradição. Para Te dizer nós precisamos de escutar uma voz nova, a voz do espirito, e ser capazes de dizer uma palavra que rompe, que faz ruptura, que é nova, uma voz que é inédita.

Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. Quando Pedro diz isto ele está a dizer uma coisa absolutamente temerária, absolutamente nova. É uma proclamação destemida aquela que Pedro faz, porque não é assegurada por nenhuma maioria, por nenhum consenso. Porque não havia consenso nenhum em torno de Jesus.

Não era nada confortável o que Pedro estava a dizer. Mas o que ele diz coloca-o sozinho no seu tempo. Torna-o uma voz solitária, uma voz em risco, uma voz que tem de sofrer por esta enormidade que diz : “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

Quando hoje nós temos de responder à pergunta «E vós quem dizeis que eu sou?», podemo-nos encostar ao que está dito. Podemos repetir como se repete um refrão, um bocadinho sonolento, aquilo que já ouvimos dizer acerca de Jesus Cristo. Podemo-nos acomodar à voz de uma maioria que, de certa maneira, nos inocenta, nos conforta e nos poupa ao risco de dizer uma palavra destemida acerca de Jesus.

Mas cada um de nós, no seu coração, é chamado a esta palavra temerária, é chamado a dizer o inédito, a dizer de Jesus o que ainda não está dito, a proclamar Jesus de uma maneira que ponha em risco, que ponha em causa a nossa própria existência.

Pedro diz “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” e Paulo será na história do Cristianismo alguém que vai dizer o mesmo e vai tirar as consequências.

Pedro diz isto no caminho da Galileia, numa aldeiazinha, num sítio onde ninguém escuta.

Paulo vai gritar isto nos areópagos do mundo, nas cidades gregas importantes, vai escrever isto na Carta aos Romanos. A primeira frase da Carta aos Romanos, que é uma frase espantosa, “Eu, Paulo, escravo de Jesus Messias”. Por esta frase Paulo pode ir bater à prisão. E foi muitas vezes.

Uma das coisas que nós enterramos, de forma prática, é o messianismo. Achamos, no fundo, que a nossa vida já está resolvida. A nova vida não é vivida em tensão. Quanto muito tememos a morte. Mas outras expectativas decisivas em relação à nossa vida nós vamos atenuando, deixando, deixando e hoje o Cristianismo, de certa forma, esvaziou-se de uma dimensão fundamental à própria experiência cristã que é o messianismo, que é a esperança messiânica.

Nós esperamos num Jesus que é Messias. Nós até traduzimos Messias por Cristo e dizemos Jesus Cristo como se Cristo fosse o apelido de Jesus, e esquecemo-nos que dizer Jesus  Cristo é dizer Jesus é o Cristo, Jesus é o Messias – que é como se diz em hebraico. Jesus é o Messias. Mas dizer isto faz tremer. Porquê? Porque todos os judeus sabiam e tinham-se encarregado de espalhar a sua fé no helenismo do tempo. Estavam presentes nas várias cidades, nas várias metrópoles da época. Quando vier o Messias o que é que cai? Cai a Lei. A Lei deixa de valer. Todas as constituições, todos os códigos deixam de valer. Cai o poder. Todos os poderes caem porque só há um poder, o do Messias, e cai o templo, e cai a forma religiosa e cai a classe sacerdotal. Porque só a há um sacerdote, que é o Messias.

Se a gente diz que ele é o Messias, o mundo tem que mudar na sua configuração. Nada da forma atual do mundo serve, é válido – é no fundo isso que Paulo vai dizer com todas as palavras. Cristo é o fim da Lei. Quer dizer, com Cristo já não há lei, a lei que serve para regulamentar a forma atual do mundo já não tem legitimidade, não tem validade porque surge o Messias. E, quando surge o Messias, começa um estado de exceção, começa um momento histórico novo, começa uma coisa que nós nunca vimos.

O cristianismo de Pedro e de Paulo, que são as duas colunas que se complementam na sua diferença, testemunham-nos um cristianismo messiânico, isto é, um cristianismo de ruptura, que é o inédito na história, um cristianismo que é um patamar novo na história – quer dizer, até aqui fizemos de uma maneira, um certo número de realidades tinha a sua validade, agora deixa de ter. Porque agora o que precisamos é de escutar o Messias. O Messias é a medida do mundo, é a medida do mundo.

Que um pregador que vem desclassificado lá de Jerusalém, de uma formação em Jerusalém, tenha a lata de dizer isso no areópago de Atenas, ou em Éfeso, ou em Filipos, e depois escreva isso com as letras todas aos Romanos, era mais do que razão para ele estar preso. E Paulo esteve grande parte da sua vida preso. Como Pedro esteve preso, como os Apóstolos estiveram presos. Estiveram presos não por delito comum. Por delito de opinião, porque muitas vezes a gente esquece-se que o cristianismo é um delito. É um delito de pensamento. Porque nós temos que pensar as coisas a partir de Jesus, de uma forma que vai contra, que está para lá de todas as formas. No fundo, todas a regras que dão a forma ao mundo, estremecem, estão aquém daquilo que pode começar em Jesus Cristo.

Queridos irmãs e Irmãos, nós somos os intérpretes de Jesus. Nós dizemos quem é Jesus. E quem é que nós dizemos que é Jesus? Quem é que nós dizemos, hoje, que é Jesus? Nas nossas vidas, nesta cidade, na comunidade, na família, no trabalho, no mundo da economia, da política, dos meios da comunicação…

Quem é que nós dizemos que é Ele? Ficamos a repetir consensualmente aquilo que está dito acerca de Jesus? Tentamos esvaziar Jesus do perigo que é Jesus, do risco que Jesus representa? Ou, pelo contrário, sentimos que a fé em Jesus é um motor de desassossego?

A fé em Jesus torna-nos a todos uns dissidentes, torna-nos a todos uns párias. Porque nada nos basta. Nós não pertencemos a nenhuma família, nós não pertencemos verdadeiramente a nenhum Estado, a nenhuma ideologia, a nenhum partido, a nenhum clube. Verdadeiramente não pertencemos, não pertencemos. Estamos nas coisas.

Sentimos que tem que ser algo mais, não num espirito de seita mas neste espirito de transformação da história, a partir do modelo radical do amor que Jesus nos veio mostrar.

E, nesse sentido, esta pergunta que Jesus faz: “Quem dizem os homens que Eu sou? E vós, quem dizeis que Eu sou?”

É um dividir das águas. É aqui que as águas se dividem.

É a minha resposta a esta pergunta.

Pe. José Tolentino Mendonça, 

Homilia da Solenidade de São Pedro e São Paulo


fonte: 

Capela do Rato