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quarta-feira, 14 de maio de 2025

Sobre a Fé

 


Tenho um respeito sagrado pela fé. Durante os três meses de internamento do Benjamim, foi palpável. Era uma presença, não era uma doutrina. Foi uma forma de resistência, uma negação da desistência. Mesmo quem não crê tem de acreditar na fé. Na fé como fenómeno humano, como pulsação comum, como contágio inevitável. A fé existe para lá da crença. Epidemiza-se, salva por osmose. Por contaminação. 


Eu senti-a ali, no hospital. Senti-a de quem rezava, de quem cuidava, de quem enviava e-mails, mensagens, vídeos cómicos. Era impossível não ser arrastado. A fé não se explica, não se prova, não se mede. Não é racional; é real. A fé não é a certeza de que as coisas vão ficar bem; é a certeza de que não deixaremos de tentar.


Em Fátima, no meio destes milhares, estariam muitos assim, com a mesma obstinação de quem se recusa a ser reduzido ao acaso. A fé é o protesto mais nobre contra a indiferença do universo.


É a fé a forma mais sublime de desobediência.


~Pedro Chagas Freitas




sexta-feira, 2 de maio de 2025

e

 

e
eu tinha quinze anos e o domingo era uma ferida aberta e o teu carro rasgava o mundo e a curva era uma boca de lobo e a imagem partia-se em silêncio e os olhos da multidão não sabiam onde pousar e a televisão não soube mentir e o capacete azul ficou imóvel e a morte sentou-se no cockpit e tu eras mais rápido do que tudo
e mesmo assim foste vencido e o tempo não travou por ti e os homens tentaram parecer calmos e os deuses não disseram nada e o meu corpo tremeu sem motivo e chorei por dentro de um corpo novo e percebi que viver era isto e esperar era uma forma de suicídio e sonhar era perigoso
e tu não tinhas ido à Disney e não ias nunca e era só isso o sonho e era só isso a vida e era só isso o absurdo e tu morreste com esse desejo intacto e ninguém te devolveu o dia certo e todos fingimos que haveria tempo e não há tempo e não há
e a morte não vem como nos filmes e a morte vem como tu vieste e ficaste e não saíste e eu fiquei contigo desde então e a tua curva é agora a minha e a tua ausência acelera dentro de mim e eu corro às cegas e não espero e não espero mais e não espero nunca e não
e

Nota:
Lindo texto,
sem pontuação,
porque, como explica num comentário o autor,
faltam na nossa vida muitas paragens... 🙏

quarta-feira, 9 de abril de 2025

O Hospital de Alfaces

 


A obesidade do ego vem da anorexia de amor.


Não é autoestima. 

É fome. 

Uma fome crua, infantil, insaciável. 

Uma fome que pede palmas, likes, confirmações diárias de que se é especial, necessário, acima da média. Um buraco negro de validação.


A ausência de amor próprio cria aberrações. 

O fraco que se acha forte porque grita mais alto. 

O inseguro que precisa de humilhar para se sentir grande. 

O carente que se enfeita de arrogância para parecer autossuficiente. 


Quando não há amor, fica a vaidade vazia.


O ego inchado é um sinal de desnutrição emocional. 

Quem se sente amado não precisa de provar nada. 

Quem é suficiente para si mesmo não precisa que o mundo o aplauda.

Quem não se alimenta de afecto empanturra-se de si mesmo. 

O vazio nunca se sacia; disfarça-se com arrogância, com o inchaço patético de uma importância inflamada. 


A obesidade do ego vem da anorexia de amor. 


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O HOSPITAL DE ALFACES

O meu novo livro.


Já disponível em todos os hipermercados e livrarias.


~Pedro Chagas Freitas






domingo, 23 de fevereiro de 2025

Porque não quero

 


— Infelizmente não vou poder ir.

— Porquê?

— Porque não quero.


Vamos normalizar isto. 

Vamos normalizar o “não quero”, o “não estou para aí virado”, o “não me apetece”. 


Não vamos ficar magoados, revoltados, só porque aquela pessoa, que amamos e que queremos ter sempre connosco, não quer, naquele momento, estar junto a nós. 

Ou porque não quer falar connosco ao telefone. 


O telefonema é invasivo, é impositivo. 


Quem telefona está a dizer: agora, neste instante, quero falar contigo. 

Está a impor o seu timing, o seu tempo. Não atender não é prova de nada, apenas de que não quero falar nesse momento que a outra pessoa definiu. Não é por isso que amo menos, que quero menos, que preciso menos. Apenas preciso de espaço para mim, apenas quero fazer outras coisas, estar noutros lugares. Está tudo bem assim. Porque não haveria de estar? 


Empatia é isso: perceber que o outro não é Eu. 


Não tem de querer o que quero quando eu quero; o outro quer o que quer quando quer, é essa a sua magia também. 


Vamos normalizar. 


Não vamos impor companhias, decisões, escolhas. 

Não vamos obrigar o outro a mentir, a enganar, a esconder o que sente, o que quer, só para não ser malvisto, mal-encarado, mal interpretado. 


O amor é liberdade, jamais prisão. 

O amor é alegria, jamais constrangimento. 


Vamos normalizar isto. 


Vamos normalizar o que é normal, o que é humano. 

Somos todos diferentes, em momentos diferentes, em estádios diferentes das nossas vidas. 


Entender isso é amor. 

Amemo-nos assim. 


~Pedro Chagas Freitas


A RARIDADE DAS COISAS BANAIS

Disponível em todos os hipermercados e livrarias




quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Um dia rebentamos


Encobrimos o que sentimos como quem esconde o lixo debaixo do tapete. 

Depois tropeçamos nele, fingimos que a culpa foi do tapete. 


Dizemos que está tudo bem quando não está. 

Sorrimos por educação enquanto morremos por dentro. 

Resolvemos as coisas “depois”, adiamos conversas, engolimos o nó na garganta como se fosse uma pastilha que um dia há-de dissolver-se sozinha. 


Não dissolve. 

Nunca dissolve.


Um dia rebentamos. 

No trânsito, numa discussão absurda sobre quem devia ter lavado a loiça, numa resposta irracional. 


O lixo vem todo ao de cima, acumulado, fermentado: um monstro criado à custa de silêncios, de recalcamentos. 


A culpa não é nossa. 

Nunca é nossa. 


A culpa é do trabalho, do tempo, do país, do chefe, da inflação, da vida. 


A culpa é do tapete. O tapete que existe para que possamos fingir.


Continuamos. 

Pisamos o tapete, sentimos debaixo dos pés tudo o que varremos. 

Até tropeçarmos de novo.


~Pedro Chagas Freitas


A RARIDADE DAS COISAS BANAIS

Disponível em todos os hipermercados e livrarias


fonte: LinkedIn






sábado, 8 de junho de 2024

Os nomes são todos bonitos

 


- Como te chamas?

- Lurdes. E tu?

- Benjamim.

- Que nome bonito.

- Os nomes são todos bonitos.


A assistente operacional dos Cuidados Intensivos ficou em silêncio. Eu e a tua mãe ficámos em silêncio. Ao fim de alguns segundos, todos percebemos a mensagem que tinhas acabado de passar. Os nomes valem pessoas. Não há nomes feios. Cabe a cada um de nós, pelo que faz, pelo que é, pelo que espalha, pelo que deixa ficar, dar ao nosso nome aquilo que ele pode representar. Benjamim, por exemplo, representa coragem, alegria, amor. Obrigado, meu filho.

~Pedro Chagas Freitas

domingo, 6 de agosto de 2023

Um milhão e meio de pessoas

Um milhão e meio de pessoas. O amor é a maior super-estrela do mundo. Nada nos move como ele. Somos o que sentimos, nunca o que temos. Passamos os dias amarrados, sem poder sentir — ou sem poder mostrar que sentimos. Quando chega a liberdade de ser, de sermos, vamos assim, em rio, em enxurrada, em euforia, felizes pela oportunidade de atirarmos a vergonha para longe. Somos tão singulares e tão iguais. Precisamos da ternura para fazer mais do que sobreviver. Precisamos do afecto para sabermos quem somos. O amor é a maior super-estrela do mundo. É por ele que as multidões correm. Tudo o que fazemos é por amor. Mais ou menos escondido, mais ou menos dissimulado, tudo o que fazemos é por amor. O amor une, e só assim é amor. O amor não é divisão, não é exclusão, não é guerra. Este não era o palco-mundo, era o palco que todo o mundo deveria ser: um palco de amor, em que todos, com coragem, actuam, artistas únicos da arte da vida. O amor não é preconceito, não é intolerância. O amor é a maior super-estrela do mundo.

~Pedro Chagas Freitas

Pedro Chagas Freitas