DN 20091123 - João César das Neves
Quando a esquerda se torna estabelecida, burguesa, dominante, quem é realmente revolucionário?
No recente debate do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o mais curioso é ouvir dizer que se trata de um direito fundamental. Alguns põe um ar grave e afirmam estarem em causa valores básicos. Mas, se é mesmo tão básico, porque ficou omisso em trinta e tal anos de democracia? Porque não consta nos documentos de referência e declarações de direitos dos últimos séculos? Como é possível os militantes, que hoje o reivindicam com urgência, terem-no esquecido tanto tempo? Mas estas afirmações, mesmo se caricatas, apontam para um dos maiores problemas culturais da actualidade.
A luta pela justiça social é o valor supremo da nossa civilização. Outras épocas e regiões buscavam a sabedoria, glória, beleza, mas a nossa quer uma sociedade justa e livre. Todos fomos educados colocando a equidade no lugar máximo e vendo a sua busca como imposição definitiva e universal. Precisamente por isso a nossa sociedade montou múltiplos mecanismos de protecção, equilíbrio e compensação que pretendem eliminar a maior parte dos agravos.
Esse sucesso é a origem do problema. Claro que ainda permanecem muitas injustiças e discriminações, como haverá sempre. Mas na nossa cultura sofisticada estão afastadas as grandes causas, combates incontroversos, campanhas claras e indiscutíveis. Nós, que crescemos à sombra dos grandes lutadores contra o fascismo, racismo, machismo e afins, não conseguimos igualar esses tempos heróicos.
Por isso pululam os rebeldes sem causa, militantes desempregados, activistas em busca de quem proteger. Claro que é fácil encontrar quem precise de defesa e apoio. Quem quiser combater o mal tem muito a fazer, como sempre teve e terá. Mas as situações que restam são simples, rotineiras, menores, próximas. Falta-lhes o romance e a dimensão das velhas lutas de Robespierre, Marx, Pankhurst, Luther King, Mandela, Xanana.
Pior, as forças que lutavam pela liberdade, igualdade e justiça estão hoje no poder, vendo-se a si mesmas dos dois lados. Como protestar contra ministros, banqueiros e empresários, se são nossos correligionários? O resultado é a grande crise da Esquerda, a quem há décadas faltam causas e sobram remorsos.
As coisas são ainda mais graves porque as razões que motivam esses generosos movimentos vêm envolvidas em grande ambiguidade. Nos conflitos actuais de valores chocam argumentos onde é cada vez mais difícil determinar o bem e o mal.
Em certos casos, as ideologias conduzem mesmo a resultados terríveis. Na luta pelo aborto, por exemplo, os activistas vêem-se cúmplices de um crime de sangue, com morte de seres humanos. Não há dúvida que é morte e não há dúvida que é humana. Por muitos argumentos e elaborações que arranjem, estão do lado da agressão aos mais fracos entre os mais fracos. Também a banalização do divórcio foi feita evidentemente à custa dos desfavorecidos. A lei facilita a vida a marialvas, adúlteros e irresponsáveis, deixando desprotegidos as crianças, mulheres, pobres, idosos. No calor da argumentação ideológica é possível disfarçar, mas o quotidiano de sofrimento desafia as falácias dos activistas.
Aliás, como os proletários costumam ser conservadores na vida e família, a esquerda vê-se cada vez mais a defender interesses burgueses. Mesmo agora, no casamento de homossexuais, é difícil defender que se trata do socorro de classes desprotegidas, prioridade social, necessidades essenciais. A retórica repete tiradas bombásticas de outros tempos, mas a fragilidade, complexidade e ambiguidade da questão é muito maior.
Existe ainda uma ironia final gritante. Que é mais corajoso, lutar por causas libertinas que toda a opinião pública tolera, ou defender os valores exigentes do casamento, família e vida? Quem são realmente rebeldes, os membros do Bloco de Esquerda que a imprensa exalta e os intelectuais apoiam, ou os que enfrentam as teses politicamente correctas? Onde está hoje a verdadeira heterodoxia, rebeldia, atrevimento? Quando a esquerda se torna estabelecida, burguesa, dominante, quem é realmente revolucionário?
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Quem é revolucionário? - Opinião - DN#AreaComentarios^
Giovanni Papini, no seu livro "História de Cristo", respondeu a esta pergunta.
Na página 74 (6ª edição da Colecção Dois Mundos), pode ler-se:
...«Quando Rousseau diz que os homens nasceram bons, mas que a sociedade os tornou maus, inverte o dogma aceite do pecado original. E quando o teórico do Progresso afirma que o Melhor deriva do Pior; e o teórico da evolução, que o Complexo brota do simples; e o Monista que todas as Diversidades são apenas manifestações do único; e o Marxista que o económico engendra o Espiritual; quando os modernos Filósofos Matemáticos afirmam que o homem não é, como se julgava, centro do Universo mas sim minúscula espécie animal à superfície duma das infinitas esferas espalhadas pelo Iinfinito; e quando os Protestantes gritam: o Papa nada vale, só vale a Escritura; e os Revolucionários de França: o terceiro estado não é nada e deve ser tudo - que fazem todos eles senão inverter opiniões antigas e comuns?
Mas o maior Inversor é Jesus. O supremo Paradoxista, o Renovador radical e sem temor. Nisso consiste a sua grandeza, a sua juventude e novidade eternas; e isso explica o secreto motivo por que todo o grande coração, cedo ou tarde, gravita para o Evangelho.
Jesus incarnou-se para transformar os homens, embebidos no erro e no mal; e achando no Mundo o erro e o mal, como poderia ele deixar de inverter as máximas do mundo?
Relede o Sermão da Montanha. A cada passo Jesus quer que o Baixo seja reconhecido como o Alto, que o Último seja o Primeiro, que o rejeitado seja Preferido, que o Desprezado seja Venerado e, enfim, que a velha Verdade seja considerada como Erro e a Vida como Corrupção e Morte. Ao Passado, regelado na sua agonia, à Natureza, obedecida com demasiada prontidão, à Opinião universal e vulgar, Jesus diz o mais resoluto NÃO que a história do mundo regista.» ...
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