by Fernando Pessoa ( Portuguese poet, 1888-1935 )
in http://paulocoelhoblog.com/2010/03/17/tobacco-kiosk/
I am nothing
I shall always be nothing
I cannot wish to be anything.
Aside from that, I have within me all the dreams of the world.
Windows of my room,
The room of one of the world’s millions nobody knows about
(And if they knew about me, what would they know?)
Open onto the mystery of a street continually crossed by people,
To a street inaccessible to any thought,
Real, impossibly real, certain, unknowingly certain,
With the mystery of things beneath the stones and beings,
With death making the walls damp and men’s hair white,
With the Destiny driving the wagon of everything down the road of nothing.
Today I am defeated, as if I knew the truth.
Today I am clear-minded, as if I were about to die
And had no more kinship with things
Than a goodbye, this building and this side of the street becoming
A long row of train carriages, and a whistle departing
From inside my head,
And a jolt of my nerves and a creak of bones as we go.
Today I am bewildered, as one who wondered and discovered and forgot.
Today I am divided between the loyalty I owe
To the outward reality of the Tobacco Kiosk of the other side of the street
And to the inward real feeling that everything is but a dream.
I have missed everything.
And since I had no aims, maybe everything was indeed nothing.
What I was taught,
I go down from the window at the back of the house.
I went to the countryside with grand plans,
But all I found in it was grass and trees,
And when there were people, they were just like other people
I step back from the window and sit in a chair. What should I think about now?
I have dreamed more than Napoleon did.
I have held against the hypothetical heart more humanities than Christ.
I have secretly created philosophies no Kant has ever written.
But I am, and perhaps always should be, the one from the attic
Although I don’t live in it;
I shall always be someone not born for this;
I shall always be the one who just had qualities;
I shall always be the one who has waited for a gate to open next a wall without a door
And sang the song of the infinite in a poultry-yard,
And heard God’s voice in a blocked-up well.
Believe in myself? No, not in me and not in nothing.
May Nature be dissolved on my feverish head
Her sun, her rain, the wind that ruffles my hair,
And the rest, let it come if it must, it doesn’t matter.
Hearts in thrall to the stars,
We have conquered the whole world before leaving our beds.
But we were awakened and it was opaque,
We rose and he was strange to us
We left the house and it was the whole world,
And also the Solar System, the Milky Way and the Indefinite…
Eat chocolates!
Know there are no metaphysics in the world but chocolates.
Know that all the faiths don’t teach more than confectionery.
Eat, dirty one, eat!
If only I could eat chocolates with the same veracity you do!
But I think, and when I lift the silver paper of a leaf of tin-foil
I let everything fall to the ground, as I have done to my life.)
Musical essence of my useless verses,
If only I could face you as something I had created
Instead of always facing the Tobacco Kiosk across the street,
Forcing underfoot the consciousness of existing,
Like a carpet a drunkard stumbles on
Or a straw mat stolen by gypsies and worth nothing.
But the Tobacco Kiosk owner has come to the door and is standing there.
I look at him with the discomfort of an half-turned head
And the discomfort of an half-grasping soul.
He shall die and I shall die.
He shall leave his signboard and I shall leave my poems.
His sign will die, and so will my poems.
And soon the street where the sign is, will die too,
And so will the language in which my poems are written.
And so will the whirling planet where all of this happened.
On other satellites of other systems something like people
Will go on making something like poems and living under things like signboards,
Always one thing facing the other,
Always one thing as useless as the other,
Always the impossible as stupid as reality,
Always the mystery of the bottom as powerful as the mysterious dream of the top.
Always this or always some other thing, or neither one nor the other.
But a man has entered the Tobacco Shop (to buy tobacco?),
And plausible reality suddenly hits me.
I half rouse myself, energetic, convinced, human,
And I will try to write these verses in which I say the opposite.
I light a cigarette as I think about writing them,
And in that cigarette I savour liberation from all thoughts.
I follow the smoke as if it were my personal itinerary
And enjoy, in a sensitive and capable moment
The liberation of all the speculations
With the conscience that metaphysics is a consequence of not feeling well.
Afterwards I throw myself on the chair
And continue smoking.
As long as Destiny allows, I will keep smoking.
(If I married my washwoman’s daughter
Maybe I should be happy.)
Upon that, I rise. And I go to the window.
The man has come out of the Tobacco Kiosk (putting change in his trousers?).
Ah, I know him: he is Esteves without metaphysics.
(The Tobacco Kiosk owner has come to the door.)
As if by a divine instinct, Esteves turned around and saw me.
He waved hello, I greet him “Hello there, Esteves!”, and the universe
Reconstructed itself for me, without ideal or hope, and the owner of the Tobacco Kiosk smiled.
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TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo
que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa
que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza,
sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo,
ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta
ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates
com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses
nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso
sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto
a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos
e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo
como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica
é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria
(metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
in Poesias de Álvaro de Campos
Os teus versos não morreram
e nunca morrerão.
Obrigado,
Filipe.