Estamos ainda em Cafarnaum, a cidade de pescadores situada junto ao Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
O tema principal aparece na primeira parte do Evangelho. Refere-se à necessidade da comunidade cristã ser uma comunidade aberta, acolhedora, tolerante, capaz de aceitar como sinais de Deus os gestos de amor que acontecem no mundo.
O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em termos de lógica do mundo e têm dificuldades em libertar-se dos seus interesses egoístas, dos seus esquemas pessoais, seus preconceitos e sonhos de grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso cortar com certos sentimentos e atitudes incompatíveis com a radicalidade exigida pelo Reino. As dificuldades que estes discípulos apresentam, no sentido de responder a Jesus, não nos são estranhas: também fazem parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos.
Assim, a instrução que, neste texto, Jesus se dirige aos Seus discípulos serve também a nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas; pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a comunidade do Reino.
Antes de tudo, Jesus mostra a eles que a comunidade do Reino não pode ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga na posse exclusiva de Deus e das Suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe qual é o seu papel e a sua missão, mas que reconhece não ter a exclusividade do bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de esperança, os quais acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da ação de não-crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição da Igreja.
O verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que os outros fazem, não sente ciúmes se Deus atua por meio de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade nem ter “exclusividade” em relação a Jesus. O verdadeiro discípulo se esforça, a cada dia, por testemunhar os valores do Reino e se alegra com os sinais da presença de Deus em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir um mundo mais justo e mais fraterno.
Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a ação de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, deveria “mover” os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e continuar a manter um estatuto de poder e prestígio. Quando afastamos, com o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade ou tranquilidade da comunidade, aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a proteger os interesses de Deus ou os nossos projetos, os nossos esquemas interesseiros, as nossas apostas pessoais?
Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado, mas está sempre atento e vigilante, procurando detectar e eliminar de sua existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e de domínio, ao apelo do êxito, ao “aplauso das multidões”, é um processo difícil e doloroso; mas é também um processo que gera vida nova.
O que é que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha vida, para me identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para ser mais livre e mais feliz?
O apelo de Jesus à sua comunidade, no sentido de não “escandalizar” os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita. Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo? Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo ou para se afastar de Cristo?
Senhor Jesus, faz-me alegrar com o Reino que dá seus frutos, na história humana, das formas mais imprevistas, para além do controle humano.
Padre Bantu Mendonça
Canção Nova
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