Escrever na água
E como José Saramago está vivo
Hoje celebramos 15 anos da partida do mundo material o grande génio que foi José Saramago.
Como retenho na memória a celeuma e polémica levantada por ele com a publicação do magistral livro «Evangelho Segundo Jesus Cristo». Relembro as várias vozes, mais ou menos ligadas à ortodoxia católica, vociferando impropérios contra o autor e as suas obras. Também me lembro da censura que o governo de Cavaco Silva intentou para boicotar o seu nome para Prémio Nobel da Literatura.
Porém, a par desta polémica toda, mais inútil do que útil, tenho na memória a voz pausada, serena do padre Tolentino Mendonça, hoje cardeal, a debater com Saramago na televisão pontos de vista diferentes, mas que em vários momentos da reflexão se aproximavam e se conjugavam na perfeição.
Neste contexto em que se rememora uma figura cimeira da nossa literatura do séc. XX, equiparado a outros que trago no regaço do meu pensamento, Luiz de Camões; Camilo Castelo Branco; Eça de Queroz; Miguel Torga; Aquilino Ribeiro; Eduardo Lourenço; Agustina Bessa Luis… Entre tantos outros que a nossa riquíssima literatura nos desvelou.
Nos tempos do recrudescimento do ódio, deve reacender em nós a única e a mais útil das devoções que é nossa opção preferencial pela humanização e pela humanidade. Disse Saramago: «As palavras proferidas pelo coração não tem língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler».
Quando oiço palavras, por mais facínoras que sejam, sempre rebobino a memória da primeira parte da frase de Caio Tito, senador romano, «Verba volant». Mas quando oiço que por detrás das palavras estão olhares felinos de ódio, de indiferença e de altivez sobre o outro, comovo-me e reconheço o quanto regredimos ou empobrecemos no trato e na forma como nos consideramos.
A desumanidade está aí em campo, nas guerras fratricidas entre nações, mas também está nos nossos areópagos democráticos e em todos os lugares onde pensávamos que se deviam reunir pessoas para se entrecruzarem respeitosamente e afetuosamente.
O que vemos são campos de batalha, chiqueiros onde se conspurcam soberbos autoconsiderados supra-humanos, com olhares pontiagudos como fios de navalha cortantes como flechas atiradas contra os corpos para matar as almas e todo o espírito que se esperava da boa convivência humana.
José Saramago pensou e disse: «A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada». JLR
fonte: Mural do Pe José Luís Rodrigues