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imagem (UP via Pe Nuno Westwood) |
O corpo do Mestre perfumado dorme
Está lá nas profundezas do coração da terra. Dorme o sono dos mortos. Aquela que é a última etapa da visibilidade terrena. A maior e incontornável certeza da existência física. É o sair da carne e dos ossos para ser pó.
Neste dia de dormição a estepe é branca maiormente. Esta é negra não tem sulcos paralelos do arado, mas está cheia de crateras, montes altos e montículos de uma terra permanentemente revolta. As plantas que nesse frequente revolver resistem expõem as raízes que o sol secou. Por isso, os ramos e folhas revirados entram também na profundidade da terra, fazem uma plantação virada do avesso que aduba a promessa de novos rebentos e frutos.
A utilidade deste dia reside em mim e em ti. Se me liberto vivo. Se me oprimo morro. Tantas vezes, fico com a impressão que vivemos num grande e vasto sepulcro, rodeado de muitas pessoas enterradas de corpo e alma. É o meu mundo e o teu quando que está submerso na negritude da escuridão, fria e desconfortável.
A verdadeira prisão não está fora de nós, mas no interior de cada um de nós. E pode ser possível que não saibamos viver sem ela. Se confirmamos tal constatação já estaremos verdadeiramente mortos e não nos apercebemos dessa morte.
Na tradição cristã este dia é conhecido como o dia do silêncio. O dia do luto dos que seguem o Mestre. As mulheres foram sábias no respeito por este dia. Sábias a se remeterem ao cuidado do corpo do Mestre, porque o untaram com lágrimas, nardo sagrado e perfumes. Os homens andavam fugidos com o medo todo às costas.
Nós hoje olhamos o Mestre e tentamos também conduzir o nosso arado sobre os ossos do Mestre morto, para que o arado não encrave, mas se revigore no óleo da esperança e volte o sonho do mundo novo. A Páscoa cristã é atualização da luta por um mundo novo.
O silêncio deste dia anima-nos no vigor de uma vida nova, onde não há caminhos, mas caminhantes em todos trilhos do coração.
É a escuta do silêncio que nos livra do medo.
O Mestre dorme, as mulheres correm ao túmulo guiadas pelo silêncio. Não têm medo. Não temem as normas. Não se retraem porque as viam numa condição inferior. São a forma motora mais fiel à revolução e à transformação do mundo novo que por hora renasce do fundo da terra.
Até podíamos definir este dia como o da libertação dos medos.
Os amigos do Mestre de verdade perceberam neste Sábado santo que deixou de existir o monstro do medo. Eis a paciência militante, pensada e consciente. E tal como diz William Blake: «A amizade verdadeira é a oposição». E com tantos a procurarem fidelidades caninas. Submissões acéfalas. Obediências cegas. E mais outras desqualificações que nalguns meios se assumem como virtudes para enfartar quem gosta de comandar povo como manada.
Esta é uma pérfida ilusão se no fim ficas só na podridão do túmulo que construíste com as tuas mãos e agora não consegues revirar a pedra que hermeticamente te fechou.
Tanto vazio confrangedor que nos rodeia, mata o silêncio deste dia e perturba o descanso do Mestre. Mas também o nosso se quisermos ser sérios e disponíveis ao que nos reconstrói por dentro. JLR
fonte: Pe José Luís Rodrigues