Mostrar mensagens com a etiqueta Eugénio de Andrade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Eugénio de Andrade. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

- Ó mãe, mãe... (Eugénio de Andrade)

 

Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. 

- Ó mãe, mãe... 

Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só porta fechada, 

- Ó mãe, mãe... 

E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. 

Era uma manhã de sol quente talvez de Julho, talvez de Agosto. 

Devia haver medas de palha na eira em frente. 

Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia.

 - Ó mãe, mãe...

E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, 

estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. 

As lágrimas caíam-me pela cara. 

- Ó mãe, mãe...

O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, 

vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras.

- Ó mãe, mãe...

E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. 

Nem mesmo tu, mãe, que a essas horas andavas a ganhar o pão 

para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.


Eugénio de Andrade

In “Os Amantes sem Dinheiro”

via Emília Roque

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Não para comer…

 


José Tolentino Mendonça

Excerto, crónica no Expresso, 04-01-2014


Mas há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do poeta Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no hospital de Santo António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como se ama uma pintura de Cézanne.


Página do autor:

Ler mais: www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=1222


#PortaldaLiteratura #JoséTolentinoMendonça #Olhar #Excertos #Literatura

fonte: PortaldaLiteratura




terça-feira, 24 de setembro de 2024

Os Amigos

 


Os amigos amei 

despido de ternura 

fatigada; 

uns iam, outros vinham, 

a nenhum perguntava 

porque partia, 

porque ficava; 

era pouco o que tinha, 

pouco o que dava, 

mas também só queria 

partilhar 

a sede de alegria — 

por mais amarga. 


Eugénio de Andrade

In “Coração do Dia"




quinta-feira, 12 de setembro de 2024

um dos melhores setembros da minha vida…

 


QUASE NADA


Passo e amo e ardo.

Água? Brisa? Luz?

Não sei. E tenho pressa:

Levo comigo uma criança

Que nunca viu o mar.


Eugénio de Andrade in:

MAR DE SETEMBRO




segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Dia Mundial da Fotografia

 
Eugénio de Andrade

Numa fotografia
Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.

O outro nome da terra, 1988

domingo, 3 de setembro de 2023

Adeus de Eugénio de Andrade


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti
Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

~Eugénio de Andrade
in Os Amantes sem Dinheiro




terça-feira, 15 de agosto de 2023

Elegia

Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia 
a harmonia 
dos frutos e dos animais.

Maio trouxe cravos como outrora,
cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora 
passa e não se demora 
na tristeza das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste o ritmo, o ardor,
ao partires um a um 
os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:
setembro traz ainda 
um fruto em cada mão.

Mas os homens, as aves e os ventos 
já não bebem em ti a direcção.
~Eugénio de Andrade in POESIA 
Amantes sem dinheiro, 1950  





sexta-feira, 21 de julho de 2023

Frente a frente


Nada podeis contra o amor,

Contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma,

contra a luz, nada podeis.


Podeis dar-nos a morte,

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco!


Eugénio de Andrade



sexta-feira, 30 de junho de 2023

Canção


 Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.

Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.

Eugénio de Andrade

domingo, 1 de maio de 2011

Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou

o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade,
in "Os Amantes Sem Dinheiro"
fonte: Lume & Ar
vídeo criado em 2022.08.05