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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Não para comer…

 


José Tolentino Mendonça

Excerto, crónica no Expresso, 04-01-2014


Mas há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do poeta Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no hospital de Santo António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como se ama uma pintura de Cézanne.


Página do autor:

Ler mais: www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=1222


#PortaldaLiteratura #JoséTolentinoMendonça #Olhar #Excertos #Literatura

fonte: PortaldaLiteratura




sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A decisão de ser feliz

 


Tenho dois amigos, um é o José Tolentino Mendonça e outro o [frei] Bento Domingues – nunca conheci ninguém tão alegre como eles – e sempre que os encontro peço-lhes para não se esquecerem de rezar por mim. Digo-lhes: não sei se Deus me ouve, mas a vós escuta de certeza. Eu dizia: Ó Bento, se eu morrer o que faço? E ele respondia: "Continuas a escrever. Descansa que te vão ler e que vais encontrar temas." É um homem admirável, sem vaidade, generoso e humilde, ele que até aos 12 anos andava atrás das cabras no Minho e só depois de um dominicano ter ido dizer a missa à sua aldeia é que descobriu que queria ser como o frade e foi para o seminário. Uma vez perguntei-lhe: Está sempre assim feliz? E e ele, numa surpresa genuína, disse-me: "O que posso ser senão feliz." O Zé Tolentino e eu tivemos uma conversa pública e entrámos de mão dada no palco – é bom estar de mão dada com um homem num sítio onde estão tantas mulheres... O Eugénio de Andrade disse-me uma vez: "Estou cheio de inveja do Hermínio [Monteiro], ele morreu de mão dada com o Tolentino." Isto foi dito por um homem duro, distante e que morreu sozinho...


© ANTÓNIO LOBO ANTUNES | The Dancing Words


outra fonte: Arlinda Ferreira



quinta-feira, 13 de junho de 2024

Amor

 


Muitas vezes acontece que, diversamente das nossas expetativas, o amor não nos reclama força, antes espera de nós uma fraqueza ainda maior do que aquela que já transportamos em nós.

Muitas vezes acontece que o amor não dê importância, ou pelo menos a grandiosa importância que tínhamos idealizado, ao quanto temos de dar, mostrando-se, antes, sobretudo interessado em adestrar o nosso coração para a arte de receber.


E, do mesmo modo, que o amor não exija de nós novas palavras a adicionar àquelas que já dissemos, mas desafia-nos à aprendizagem de uma contemplação e de um silêncio que tínhamos até agora ignorado.


Na verdade, o amor, para revelar-se, não escolhe esta ou aquela preciosa veste, mas decide-se na exata e difícil nudez da vida normal. O amor não é um estado excecional caracterizado pelo extraordinário e pelo entusiasmo, mas o reiterado percurso de espinhos que conduz à rosa.


Por isso, Senhor, ajuda-nos a compreender que amar é descobrir, no próprio coração, o quanto o amor é grande e livre, mais do que as imagens que dele possamos fazer. Que o compromisso incondicional com tal amor seja o nosso modo quotidiano de estar diante de ti. 

Cardeal D. José Tolentino Mendonça© 


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sexta-feira, 29 de março de 2024

Ninguém se sinta só


Hoje é o dia da nudez, hoje é o dia em que olhamos para as mãos vazias e não temos nada, vale tanto estar aqui como noutro sítio qualquer, nada nos distingue das outras mulheres e dos outros homens da terra. Nenhum sinal nós ostentamos senão as nossas mãos vazias. 


Essa é a nossa forma de oração neste dia, este dia e o dia de amanhã são os dias do ano em que não há Eucaristia, em que as Igrejas estão assim, como lugares vazios, como terra desolada. Essa é a lição da cruz.


“Tudo está consumado” quer dizer que se chegou à plenitude, que o destino, que o desígnio se realizou. O que a cruz nos grita, o que a cruz nos diz é: ama até ao fim, ama até ao fim, consuma a tua vida, consuma, realiza, plenifica a tua existência. Não vivas a 50%, a 40%.


Como se leu hoje na Carta aos Hebreus, nós temos um Sumo-Sacerdote capaz de se compadecer dos nossos sofrimentos, porque Ele próprio carregou a nossa culpa, carregou a nossa iniquidade. 


Ninguém se sinta só, ninguém se sinta só.


Muitas vezes até nos infernos que escolhemos percorrer é importante sentir que Ele está lá. Uma das frases mais extraordinárias aplicadas a Jesus pela Igreja primitiva e que nós encontramos no Evangelho é dizer: “Ele foi contado entre os malfeitores.” Ele foi contado, éramos um grupo de malfeitores e Ele foi contado entre nós, éramos um 

grupo de maldizentes e ele foi contado entre nós, éramos um grupo de miseráveis e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de condenados e Ele foi contado entre nós. Ele está sempre a ser contado entre nós porque é solidário com a fragilidade, com a  vulnerabilidade humana. Esta solidariedade de Cristo ajuda-nos a ser, é a âncora, é a mão estendida à nossa humanidade mas é também um desafio a nós ajudarmos Deus.


— Cardeal D. José Tolentino Mendonça

(homilia / Sexta-feira Santa, Celebração da Paixão do Senhor).


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sábado, 9 de março de 2024

Zé Tolentino

António Lobo Antunes

 

Zé Tolentino: ele tem as duas coisas em grau altíssimo, o malandro. Uma bondade enorme e a inteligência metida lá dentro. De que serve ela, aliás, fora disso? A bondade
(e, já agora, a modéstia)
rodeiam-no como um halo, a inteligência possui uma descrição e uma delicadeza que não sei se encontrei em mais alguém. Para além disto
(ele, de facto, é escandalosamente rico)
carrega uma agudeza e uma cultura de cristal de rocha e um talento poético de excepção. Nós somos, felizmente, um país de poetas, de grandes poetas, e José Tolentino Mendonça é sem dúvida um deles. E isto é verdade porque eu digo. A sua voz é inteiramente pessoal, compreende-se, ao lê-lo, que o seu conhecimento das obras alheias é muito grande, nota-se, como em qualquer artista, o halo dos autores que foram importantes para ele, mas a sua voz não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo. (Se eu fosse parvo escrevia eu próprio, que é como pôr ketchup em cima de rodelas de tomate.) Não só não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo como se sente que a qualidade da sua voz vai continuar a crescer. E o pouco
(o muito pouco)
que conheço da sua prosa é de altíssima qualidade. Não é um ficcionista nem me interessaria que o fosse, é um magnífico escritor com um perfeito domínio da ondulação e do ritmo, capaz de pensar numa musicalidade de cristal, denso sem nunca ser pesado, fundo sem nunca sair pela outra ponta, de palavras todas dominadas como cavalinhos de circo. O talento deste homem, naturalmente humilde, faz-nos sentir aquela inveja boa da qual o Zé Cardoso Pires me falou tantas vezes:
— Tenho uma inveja boa de ti,
dizia ele todo vaidoso
tenho uma inveja boa de ti
e é óptimo ter uma inveja boa dos camaradas de ofício. Infelizmente, Zé, falta-me a tua qualidade humana e nisso invejo-te também. Eu, que me acho o melhor do mundo
(não tenho lugar em mim para falsas modéstias)
invejo-te de um modo que me faz morder-me todo. Invejo-te a quantidade e invejo-te a qualidade, quase que dava o cu
(desculpa lá, não sou padre)
para compor poemas assim. Sendo um homem complexo, por vezes aparentemente contraditório, consegues sempre tocar-me no coração do coração porque a tua inteligência é uma doçura de gume que me penetra sempre até ao centro de mim, onde estou eu e tudo o que amo também. Devo-te o prazer de te ler, devo-te o prazer de aprender contigo
(que ensinas sempre aprendendo, malandro, outra virtude rara)
devo-te o prazer de, ao estarmos juntos, sermos dois sobretudo quando conseguimos ser um. Esta crónica não vai ser comprida porque está cheia de amor, amizade, respeito e ternura e esses sentimentos poupam-se. Só quero dizer quanto te agradeço não por seres meu amigo, só quero dizer quanto te agradeço por eu ser teu amigo. Quem não necessita de um amigo assim nesta vida? Espero que tenha sobrado suficiente papel nesta página para caber lá um abraço.
© ANTÓNIO LOBO ANTUNES
The Dancing Words

quarta-feira, 6 de março de 2024

Muita Luz!

Ilumina, Senhor, o que resta em nós da noite. 


O escuro fixa-se à vida, propaga-se uma treva pelos corredores da casa, a esperança que tanto queríamos tem as luzes apagadas há tanto tempo! Tropeçamos dentro de nós, e por toda parte, em fios que não vemos. Assistimos ao nascer do teu dia, mas nem sempre renascemos para ele, já que nos aprisionam os laços de seda desta e daquela escuridão, que bem conheces. lumina, por isso, Senhor, os pátios da tristeza pequenina que contamina tudo. Entreabre-nos à tua verdade, que é o cotidiano vigor dos nossos recomeços. Faz-nos olhar a maré alta, o oceano vasto, as coisas simples e plenas como sinais do que somos chamados a ser. Alimenta-nos do pão claro da alegria. Dá-nos a vida intacta. 

Cardeal D. José Tolentino Mendonça


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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Notícia Universal

 

Tolentino Mendonça 

Queridos irmãs e irmãos, nós não estamos a celebrar o Natal do Senhor apenas como um fato que interessa aos cristãos. Não é apenas uma coisa nossa, uma coisa para nós. Esta boa notícia é uma notícia universal, é uma notícia para chegar a todos.


“Hoje nasceu-vos um Salvador.” Poder dizer isto, poder primeiro aceitar esta verdade no fundo do meu coração: hoje nasceu para mim um Salvador. E poder contagiar, poder contaminar, poder alargar o horizonte da história com esta verdade que é a verdade transformadora, a verdade que salva. Porque aquele Menino, aquele Filho que nos foi 

dado transporta para nós a salvação.


É belo pensarmos como é que esta salvação se manifesta, “Encarnou no seio da Virgem Maria e Se fez homem”. E se fez um de nós. Então, nós não estamos sós. E a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus – a nossa vida frágil, a nossa vida pequenina, a nossa vida impreparada, a nossa vida incompleta. A nossa vida que porventura até não nos satisfaz, a nossa vida esgotada, a nossa vida cansada, a nossa vida inconclusa, a nossa vida é o lugar de Deus, é a tenda de Deus, é a morada de Deus e de toda a Humanidade. Por isso, nós cristãos somos servos da humanidade, temos de cantar a beleza da humanidade, a inteireza da humanidade. De todo o Homem. E sobretudo das humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade daqueles que ficam para trás, daqueles que não têm voz nem vez, da humanidade sofrida, da humanidade subtraída, dos excluídos, dos descartados. Nós só temos a humanidade para poder tatear o rosto de Deus, é na humanidade que nós encontramos o divino. Por isso, a humanidade é o bem mais precioso, a humanidade para nós é o lugar de Deus, o rosto de Deus. Esse espaço onde Ele resplende.


~Cardeal D. José Tolentino Mendonça (homilia).

domingo, 15 de outubro de 2023

Em última análise, só o Amor conta

Francisco pede que doutora da Igreja
inspire comunidades e responsáveis,
para superar «lógica legalista e moralista»

Vaticano: Papa publica novo documento sobre Santa Teresinha, evocando «genialidade» do seu legado espiritual


O Papa publicou hoje uma nova exortação sobre a vida e legado espiritual de Santa Teresinha, Teresa do Menino Jesus, convidando a imitar a religiosa francesa na redescoberta do “essencial” da fé e da centralidade do amor, na vida cristã.
“Num momento de complexidade, ela pode ajudar-nos a redescobrir a simplicidade, o primado absoluto do amor, da confiança e do abandono, superando uma lógica legalista e moralista que enche a vida cristã de obrigações e preceitos e congela a alegria do Evangelho”, refere, no documento intitulado ‘C’est la confiance’ (é a confiança), uma citação da própria Santa Teresinha.
Teresa de Lisieux, monja carmelita (Alençon, França, 02 de janeiro de 1873 – Lisieux, França, 30 de setembro de 1897) morreu com 24 anos de idade, sendo umas das padroeiras dos missionários na Igreja Católica.
“Num tempo que nos convida a fechar-nos nos próprios interesses, Teresinha mostra a beleza de fazer da vida um dom. Num período em que prevalecem as necessidades mais superficiais, ela é testemunha da radicalidade evangélica”, indica Francisco.
“Numa época de individualismo, ela faz-nos descobrir o valor do amor que se torna intercessão. Num momento em que o ser humano vive obcecado pela grandeza e por novas formas de poder, ela aponta a via da pequenez. Num tempo em que se descartam tantos seres humanos, ela ensina-nos a beleza do cuidado, do ocupar-se do outro”, acrescenta.
O Papa fala num tempo de “entrincheiramento e reclusão” na Igreja, propondo a figura de Santa Teresinha como inspiração para a “saída missionária, conquistados pela atração de Jesus Cristo e do Evangelho”.
O documento começa com um texto escrito, em setembro de 1896, por Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face: “Só a confiança e nada mais do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor”.
Francisco considera que estas palavras “sintetizam a genialidade da sua espiritualidade e seriam suficientes para justificar o facto de ter sido declarada doutora da Igreja”.

"A sua genialidade consiste em levar-nos ao centro, àquilo que é essencial, àquilo que é indispensável. Com as suas palavras e com o seu percurso pessoal, mostra que, embora todos os ensinamentos e normas da Igreja tenham a sua importância, o seu valor, a sua luz, alguns são mais urgentes e mais constitutivos para a vida cristã”.

O Papa destaca outra frase da religiosa carmelita, “no coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor!”, para sublinhar que “o centro da moral cristã é a caridade, que é a resposta ao amor incondicional da Trindade”.
“Em última análise, só o amor conta”, insiste.
O texto sublinha que a vida e obra de Santa Teresinha fazem “parte do tesouro espiritual da Igreja”.
“Como teólogos, moralistas, estudiosos de espiritualidade, como pastores e como crentes, cada qual no respetivo âmbito, temos ainda necessidade de acolher esta intuição genial de Teresinha e tirar as devidas consequências teóricas e práticas, doutrinais e pastorais, pessoais e comunitárias. São precisas audácia e liberdade interior para o poder fazer”, apela o pontífice.
Francisco evoca o reconhecimento que foi prestado pelos seus predecessores ao percurso de vida da santa de Lisieux, começando com o Papa Leão XIII, que permitiu que ela entrasse no convento aos 15 anos; Pio XI canonizou-a em 1925 e, em 1927, proclamou-a como padroeira das missões; São João Paulo II declarou-a doutora da Igreja em 1997.
O Papa recorda ainda o “coração” da espiritualidade de Teresa, a que ela chamava o “pequeno caminho”, também conhecido como o caminho da infância espiritual.
“É a confiança que nos conduz ao Amor e assim nos liberta do temor; é a confiança que nos ajuda a desviar o olhar de nós mesmos; é a confiança que nos permite colocar nas mãos de Deus aquilo que só Ele pode fazer. Isto deixa-nos uma imensa torrente de amor e de energias disponíveis para procurar o bem dos irmãos”, indica.
A exortação apostólica conclui-se com uma oração do Papa: “Querida Santa Teresinha, a Igreja precisa de fazer resplandecer a cor, o perfume, a alegria do Evangelho. Ajuda-nos a ter sempre confiança, como tu fizeste,o grande amor que Deus tem por nós, ara podermos imitar todos os dias o teu pequeno caminho de santidade”.

OC

Fonte: Ecclesia
via WhatsApp/João Pombo

A força manifesta-se na fraqueza

Santa Teresa de Jesus, que sabia bem conjugar santidade e humor — mistura muito saudável! — , diz que é uma ingenuidade supor que “as almas às quais Nosso Senhor se comunica, de uma maneira que se julgaria privilegiada, estejam, contudo, asseguradas nisso de tal modo que nunca mais tenham necessidade de temer ou de chorar os seus pecados”.

O caminho espiritual não nos impermeabiliza em nenhuma etapa em relação à vulnerabilidade, da qual temos de estar conscientes. Transportamos o nosso tesouro em vasos de barro - como nos recorda São Paulo - para demonstrar que “este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós mesmos” (2 Coríntios 4,7). Somos, por isso, chamados a viver o dom de Deus, até o fim, na fragilidade, na fraqueza, na tentação e na sede. Podem variar de gênero os problemas que vivemos, podem mudar de frequência, ou de intensidade, mas acompanhar-nos-ão sempre. As tentações vão existir.

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terça-feira, 26 de setembro de 2023

O Senhor que cuida das estrelas

 

Amigos, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas. Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” 


Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. 


E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada.


O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. 


E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé.


~Cardeal D. José Tolentino Mendonça (homilia) 

Mural do Cardeal Tolentino


segunda-feira, 29 de maio de 2023

Todos precisamos de perdão

Nosso desígnio, inconfessado, mas claríssimo, passa a ser atravessar a vida (e o que nos resta dela) com o estatuto de vítima. 


A nossa cabeça de pessoas crescidas é complicada. 


Descobrimos que há um prazer em listar achaques e traições, e se a minha chaga puder ser maior do que a tua tanto melhor, isso reforça o meu estatuto. A verdade é que se não tomarmos atenção, a desgraça íntima torna-se um escanzelado pódio onde nos blindamos. Penso que uma viragem se opera quando aceitamos perceber que somos todos vulneráveis. É fácil reproduzir um esquema dialéctico em que somos a vítima e o outro agressor e esquecer que ele também é atravessado pelo sofrimento. De fato, não raro, a agressão é uma linguagem desviada para exprimir ou para dissimular a condição de vítima. 


Um necessário caminho é reconhecer que naqueles que nos ferem (ou feriram) há também bloqueios, mazelas e opacos novelos. Se não nos amaram, não foi necessariamente por um ato deliberado, mas por uma história porventura ainda mais sufocada do que a nossa. Não se trata de desculpabilização, mas de reconhecer que naquele que não me fez justiça ou não me devolveu a cordialidade que investi existe alguém provado pelo limite. E que a ferida agora acesa não se destinava a mim especificamente: era um magma de violência à deriva, à beira de estalar.


Todos precisamos de perdão.

Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha.


Muitas vezes a aproveitamos, a dor, para nos instalarmos nela. Preferimos ficar a esgravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade, em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa. Parece que aquilo que aconteceu (e de mal, ainda por cima) saciou-nos completamente. As ofensas recebidas revelam-nos um duro e irônico retrato de nós. Ora, para perdoar é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O sol não brota de repente. Essa demora é uma condição da sua verdade.

Tolentino

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Até ao fim

Com a entrada triunfal em Jerusalém, Jesus realiza a sua vontade de ser reconhecido como o Filho de Deus e o Messias prometido. Mas o seu triunfo é totalmente diferente daquele que o mundo costuma imaginar. Jesus não chega montado num cavalo de guerra, acompanhado de exércitos, para conquistar territórios ou riquezas. Ele vem num jumentinho, humilde e manso, acompanhado de um grupo de discípulos simples e pobres. Não vem impor a sua vontade pela força, mas sim pela palavra e pelo amor.

Ao entrar em Jerusalém, Jesus sabia que seria preso, julgado e condenado à morte. Mas não recuou diante do seu destino. Ele sabia que aquele era o caminho que o Pai lhe tinha traçado e que, através da sua morte e ressurreição, salvaria a humanidade do pecado e da morte. Por isso, apesar de todo o sofrimento e da angústia que sentia, não desistiu da sua missão.

O Domingo de Ramos convida-nos a refletir sobre a nossa própria vida. Quantas vezes nos sentimos desencorajados diante das dificuldades e dos obstáculos que encontramos no caminho? Quantas vezes temos medo de enfrentar o sofrimento e a morte? Precisamos aprender com Jesus a confiar na vontade do Pai e a seguir o seu exemplo de humildade, mansidão e amor. Somente assim poderemos experimentar a verdadeira alegria da Páscoa, a alegria da vitória sobre o pecado e a morte, a alegria da vida nova em Cristo.

Assim, irmãos e irmãs é um momento em que olhamos para Cristo e deixamo-nos interpelar pela sua entrada triunfal em Jerusalém. É um momento em que nos perguntamos se estamos prontos para acolher este Rei que vem ao nosso encontro, para O seguirmos nas suas dores e nos seus triunfos, para O amarmos como Ele nos amou, até ao fim.

Cardeal José Tolentino de Mendonça 

 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

REZAR O ALARGAR DA VIDA

 

REZAR O ALARGAR DA VIDA


Ensina-nos, Senhor, a ser mais simples do que somos, capazes de acolher a vida na sua inteireza, assumindo o grande serviço que é desimpedir e descomplicar.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais bondosos do que somos, disponíveis a suspender a rotineira máquina dos julgamentos e a fixarmo-nos não na imperfeição, mas na porção de autenticidade que cada um transporta.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais mansos do que somos, escolhendo a via da doçura que é própria de quem se dispõe a escutar e a reconciliar, em vez da dureza que apressadamente divide.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais paternos e maternos do que somos, implicados a cada momento na gestação positiva da vida, aceitando que a conjugação do verbo nascer acompanha os seres humanos até ao fim.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais artesãos da paz do que somos, valorizando nesse trabalho reparador todos os fios da relação, mesmo aqueles que se diriam indecisos, frágeis ou perdidos.
Ensina-nos, Senhor, a ser mais crentes do que somos, arriscando substituir o pessimismo pela esperança quando se trata de avaliar as sementes e o percurso complexo que é afinal o de qualquer existência.

P. Tolentino
30.01.2023